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quarta-feira, 3 de julho de 2024

A tetralogia napolitana de Elena Ferrante

Já algum tempo eu estava buscando alguma leitura para me prender, daqueles livros que dão vontade de chegar em casa logo para poder voltar a ler, de esquecer que tem que ir dormir cedo para trabalhar no dia seguinte, de torcer para sábado e domingo chegarem para passar o dia todo lendo. E essa tetralogia me entregou justamente isso. De Fevereiro até Junho, só o que eu fiz foi ler Elena Ferrante. Fiquei tão fissurada, que fui correndo assistir a série da HBO assim que terminei a leitura, para continuar com o gostinho da trama na boca.

A tetralogia napolitana de Ferrante já é considerada um clássico da literatura contemporânea por alguns entendidos da área e hoje eu entendo porquê. Nesses quatro livros, acompanhamos o nascimento, desenvolvimento e morte da amizade de duas personagens: Elena (Lenu - a narradora da história) e Rafaela (Lina/Lila), que parecem tão distintas em personalidade, mas que, vez ou outra, se pegam vivendo os mesmos impasses e as mesmas contradições.

(Pode conter spoilers)

Em A Amiga Genial, Ferrante estabelece as raízes dessa amizade, constrói o cenário e as personalidades das duas garotinhas, que logo vemos se transformando em duas adolescentes. "Eu sou a má, você é a boa", disse Lila, já fazendo essa primeira distinção. Morando no mesmo bairro, em prédios vizinhos, e frequentando a mesma escola, Lenu e Lila pareciam ter destinos similares: ambas inteligentes, sagazes e destemidas. Logo estabelece-se uma relação de quase simbiose e competição entre as duas. Contudo, no final da quarta série, as duas amigas são obrigadas a se separar, pois, enquanto Lenu continua seus estudos no Fundamental II, Lila é impedida de estudar por sua família, que precisa de ajuda no comércio. Neste momento ocorre uma cisão irreparável entre as duas. Lenu iria viver tudo aquilo que Lila tinha planejado para a sua própria vida, mas não teve oportunidade de seguir. Separam-se em "o que Lenu foi e Lila poderia ter sido" e "o que Lila foi e Lenu pode se tornar se não prestar atenção aos seus passos", quase como se uma mesma pessoa visse a separação de sua linha do tempo em dois multiversos onde tomou decisões (ou decisões foram tomadas por outros sobre si) que mudaram para sempre sua vida. 

Em História do Novo Sobrenome, o livro se desenrola em volta das relações amorosas e conjugais de Lenu e Lila. Enquanto Elena tenta conciliar essas relações com seus estudos, Lila tenta conciliá-las com as expectativas de sua família e de todo o bairro. Este segundo livro foi o mais babadeiro, cheio de acontecimentos movidos pela juventude dos personagens, afoitos em viver, perseguir seus sonhos e errar o tempo todo. Justamente por isso, essa unidade carrega uma tensão difícil de explicar. Aquela da classe trabalhadora, das pessoas que vieram do nada, de que qualquer passo dado em falso poderia significar a completa perdição das personagens. Elas não tem direito a uma segunda chance. 

Aqui, você começa a conhecer tão bem as personagens, seus medos e sonhos, que, durante todos os outros livros, por mais inesperado que seja um acontecimento, uma tomada de decisão, você percebe o embasamento daquela escolha. A forma de agir de Lenu e Lila nunca é aleatória. Ao final, você já está soltando mentalmente frases como "típico da Lila agir assim". 

Em História de quem foge e de quem fica, percebemos um crescendo na tensão política do momento, com ascensão do fascismo na Itália e perseguição aos comunistas. Também observamos o início de movimentos e discussões feministas até hoje contemporâneas, sobre a infiltração de todas as filosofias acadêmicas de igualdade nas classes operárias, menos estudadas, extremamente exploradas e subjugadas por outras classes diariamente, ou até mesmo subjugada entre seus próprios membros. 

Essas reflexões político-ideológicas permeiam todos os campos da vida de Lenu, agora uma escritora conhecida que não mora mais no bairro de origem, que precisa descobrir como se posicionar, como ajudar, como contar a história do seu bairro sem ser perseguida, sem perder leitores, conciliando o papel de feminista com o papel de esposa, mãe e "menina do bairro que deu certo". 

Para mim, foi o livro mais bonito, o que mais me tocou, pois a personagem passou pela idade que tenho hoje. Em muitas páginas, me peguei fazendo as mesmas indagações de Lenu, me indignando com as mesmas coisas, refletindo sobre qual aspecto me resignar ou não, sobre o que se pode mudar do nosso cotidiano e o que não se pode mudar, me olhando no espelho buscando entender quem ou o que eu tinha me tornado.

Por fim, em A menina perdida,  Lenu volta ao bairro de origem e volta a dividir o cotidiano e jornadas de vida com Lila. A reaproximação das duas é algo positivo ou negativo? Precisa ser apenas uma dessas coisas? Já mais amadurecidas, as nossas protagonistas simplesmente resolvem serem quem são, despir as máscaras, viver as suas verdades e seus sonhos de acordo com a possibilidade de suas realidades. De fundo, sempre há o questionamento se existe mais para se viver além do bairro e, se existe, para que viver essas coisas? Será que vale a pena? É um livro que deveria trazer respostas, mas não traz. Só traz mais perguntas, mais indagações, assim como é a vida. Sem resoluções mesmo.

Duas coisas que eu me apaixonei nessa tetralogia foram: (1) Durante a narrativa dos quatro livros, conseguimos distinguir claramente o ponto de vista enviesado de quem conta a história. Tendo conhecimento da história dos personagens, você se torna tão íntima de suas personalidades que já consegue separar o que é fato do que é opinião. (2) Você nunca sabe a quem se refere o título dos livros. Seria Lila ou Lenu a Amiga Genial? Ou seriam ambas? A história do novo sobrenome, será o de Lila ou de Lenu? Quem fugiu e quem ficou? E quem voltou? Quem é a menina perdida? Esse título é literal ou subjetivo? O mais curioso é que, mesmo depois de ler os quatro livros, ainda não há uma certeza. Pois os títulos dos livros não são sobre uma ou outra, são sobre as duas, em momentos distintos, ao mesmo tempo, mas sempre as duas, vivendo vidas diferentes, mas que se cruzam em tantos pontos.

Eu vi gente no Twitter falando que o livro é chato, pois nada acontece. Fiquei indignada, pois para mim é justamente o contrário: uma vida inteira acontece. Na verdade, duas vidas inteiras. E nós temos o privilégio de acompanhar a evolução dessas duas mulheres passo a passo, suas decisões, seus arrependimentos, seus sentimentos contraditórios. É de uma beleza e reflexão incríveis. 

terça-feira, 2 de julho de 2024

Os cem melhores contos brasileiros do século - Ítalo Moriconi (organizador)

Eu sempre amei ler contos. Já com uns 11 anos de idade, meus pais começaram a me dar livros do maravilhoso Luís Fernando Veríssimo, os quais eu devorava. Não vou dizer que entendi todas as entrelinhas, mas o que eu aprendi com esses contos era que a leitura poderia ser muitas coisas, inclusive divertidíssima. 

Meu pai ganhou de presente "Os cem melhores contos brasileiros do século" no ano da sua publicação (2000!) e desde aquela época eu namoro esse tijolão que ficou bastante tempo na mesa de cabeceira dele, até ir para as estantes. Na época, achava que não ia compreender muito bem ou achar chatos os contos mais antigos. Estava certa, não iria entender muito coisa ali mesmo com 13 anos. Principalmente os contos mais controversos, como de Rubem Fonseca, nus e crus, que me fizeram embrulhar o estômago. E alguns contos são bem chatos mesmo.  

Enfim, essa coletânea foi organizada por Ítalo Moriconi. Logo no início ele explica que escolheu os que ele gostava mais mesmo, sem um fundo puramente técnico de qual autor representava melhor a tal qualidade daquele período literário. Logo, há muito espaço para divergir se realmente eram os melhores contos brasileiros do século, pois a escolha foi totalmente pessoal e enviesada. Na minha opinião, faltou comédia e sobrou violência.

Apesar disso, ainda assim Ítalo teve o cuidado de nos contar a evolução dos contos brasileiros ao longo das décadas, de trazer uma ou outra característica mais marcante. Confesso que achei bem interessante ler a respeito e ver na prática esse desenvolvimento da nossa literatura.

De toda forma, essa longa viagem foi uma excelente oportunidade de conhecer autores brasileiros que eu não tive muito contato durante a vida, como Carlos Heitor Cony, Érico Veríssimo, Dalton Trevisan, Moacyr Scliar, Victor Giudice, Caio Fernando Abreu (acreditem, nunca tinha lido e amei) e João Ubaldo Ribeiro. 

Apesar de uns tantos contos chatinhos, valeu muito a pena ler. Quem sabe na virada para o Século XXII alguém não faz uma nova coletânea e eu não esteja lá? Sonhar não custa nada.

O livro dos Baltimore - Joël Dicker

"O livros dos Baltimore" de Joël Dicker conta a história dos dois ramos da família Goldman: os de Montclair e os de Baltimore. Marcus é um  Goldman de Montclair, que cresceu com o sentimento de inadequação e insuficiência, comparando o tempo todo seu estilo de vida, seus pais e sua casa com aqueles dos seus primos e tios de Baltimore, extremamente bem sucedidos.

A história começa com Marcus indo visitar um dos seus primos pela última vez, antes que o primo fosse preso. O motivo não é revelado. Ao invés disso, o autor volta vinte anos na história para contextualizar essa prisão. O autor alterna entre acontecimentos do passado e o presente, sempre indo e voltando. Eu devo estar muito amarga hoje, mas esse é um recurso narrativo já bastante usado e, no caso desse livro, por ele voltar em vários pontos do passados distintos, se tornou também um pouco cansativo. 

Nessas voltas, o autor constrói a personalidade de todos os 5 personagens mais proeminentes da trama: Marcus, seus dois primos e tios. Contudo, achei essa construção bastante superficial, onde cada personagem desempenhava apenas um papel (menino brigão, menino estudioso, mulher acolhedora, etc), algo bastante raso e que dificultou que eu me apegasse, ou até mesmo gostasse, de qualquer personagem. Pouco depois, a gente descobre que aquela primeira cena da visita ao primo também é no passado, antes de acontecer O DRAMA. E o que é "o drama"? Também não sabemos, mas sabemos que esse acontecimento mudou os rumos de todos os envolvidos. 

O vocabulário utilizado não é muito rebuscado e não há espaço na leitura para grandes reflexões (tudo é jogado na lata), então a leitura é bastante fácil e fluida. Numa longa viagem de Minas Gerais para o Rio Grande do Sul, li mais de 70% do livro. Então, você vai sendo levado pela leitura, coletando pequenas pistas aqui e ali do que pode ter sido o drama, quem estaria envolvido, tudo o mais. Como o tempo da narrativa muda muito, está sempre acontecendo alguma coisa, em algum dos núcleos de personagem, em algum tempo. Mas a sensação é de que nada se conecta e nada se desenvolve muito profundamente. Não há um crescendo, parece mais um amontoado de fatos.

Lá por volta de 85% do livro, finalmente acontece o tal do drama e, quando ele acontece, você é pego totalmente de surpresa. Não porque é um roteiro muito bem escrito, mas porque é totalmente aleatório. Você não consegue imaginar o drama, pois as parcas informações sobre a personalidade dos personagens não corroboram com os fatos do tal drama. Pareceu totalmente sem sentido, tirado do c* só para chocar. Aí eu terminei o livro na força do ódio, porque eu já tinha lido pra mais de 350 páginas.

Bom, eu não conhecia o autor, fui ler totalmente às cegas. Baixei o livro pois vi  muita gente propagandeando o autor no Twitter e o livro estava de graça. Depois fui procurar saber quem era e vi que até ganhou prêmios literários importantes. Sinceramente, eu achei o livro ruim. Ele te prende a atenção, mas um acidente de carro também prende sua atenção e não é algo bom de ver. Para um ganhador de prêmio, eu esperava algo um pouco mais trabalhado. 

domingo, 30 de junho de 2024

Amor, dever e destino - Tawany Carvalho

No seu livro de estreia, Tawany mostra a sua capacidade inventiva e seu potencial como escritora. Com uma narrativa jovem, a autora submete seus personagens apaixonados e cheios de sonhos a diversos reveses da vida. É um livro onde acontece bastante coisa, mesmo, de desilusão amorosa até terceira guerra mundial, com diversas reviravoltas e mudanças de cenário. Às vezes, as mudanças foram tão rápidas que foi um pouco difícil de acompanhar.

Sei que ela tem outros livros publicados, mas não os li. Não sei o quanto sua escrita amadureceu de lá para cá. Tendo como base apenas essa obra, creio que a autora possa reduzir um pouco a quantidade de dramas e focar em se aprofundar nas emoções que cada acontecimento individual desperta nos seus personagens. Senti que alguns acontecimentos importantes foram retratados muito por cima, como se não fossem grande coisa na vida daquelas pessoas, sendo que eram acontecimentos gigantescos. 

Enfim, uma boa obra de estreia, bem escrito e revisado. Contudo, acho que, definitivamente, não sou o público-alvo. 

A morte é um dia que vale a pena viver - Ana Cláudia Quintana Arantes

Em "A morte é um dia que vale a pena viver", Arantes nos conta a sua experiência como médica: como sua rotina agitada e o constante contato com a morte mudaram sua maneira de pensar a respeito da vida. A morte é um verdadeiro tabu em um país tão católico quanto o nosso, cujos dogmas dizem que quando a morte chega, acabou a festa. Logo, como sociedade, evitamos pensar nesse último momento que todos os seres vivos do planeta um dia chegarão. O livro de Arantes nos mostra que ignorar esse tema é uma pena, pois refletir sobre a morte e a finitude da vida pode nos trazer uma nova perspectiva sobre o viver e o deixar ir.

É um livro bem bonito e acho que vale a pena ser lido. Contudo, eu já tinha lido um livro na mesma temática alguns anos atrás (Os Cinco Convites - Frank Ostaseski), que achei jogado numa gôndola de livros a R$5,00 nas finadas Livrarias Saraiva. Curiosamente, ambos os livros foram lançados em 2017 (talvez fosse um tema em voga naquele ano). Li o de Ostaseski em 2018, mas só fiquei a par do livro de Arantes ano passado. 

Achei o livro do Ostaseski mais completo, onde o autor se aprofundou mais nas suas conclusões filosóficas e mostrou como os ensinamentos mudaram a forma dele mesmo viver, nunca deixando de mostrar seu lado humano. E o livro dele ainda ressoava aqui dentro. Talvez, por isso, eu não tenha me sentido assim tão maravilhada pelo livro de Arantes.