Já algum tempo eu estava buscando alguma leitura para me prender, daqueles livros que dão vontade de chegar em casa logo para poder voltar a ler, de esquecer que tem que ir dormir cedo para trabalhar no dia seguinte, de torcer para sábado e domingo chegarem para passar o dia todo lendo. E essa tetralogia me entregou justamente isso. De Fevereiro até Junho, só o que eu fiz foi ler Elena Ferrante. Fiquei tão fissurada, que fui correndo assistir a série da HBO assim que terminei a leitura, para continuar com o gostinho da trama na boca.
A tetralogia napolitana de Ferrante já é considerada um clássico da literatura contemporânea por alguns entendidos da área e hoje eu entendo porquê. Nesses quatro livros, acompanhamos o nascimento, desenvolvimento e morte da amizade de duas personagens: Elena (Lenu - a narradora da história) e Rafaela (Lina/Lila), que parecem tão distintas em personalidade, mas que, vez ou outra, se pegam vivendo os mesmos impasses e as mesmas contradições.
(Pode conter spoilers)
Em A Amiga Genial, Ferrante estabelece as raízes dessa amizade, constrói o cenário e as personalidades das duas garotinhas, que logo vemos se transformando em duas adolescentes. "Eu sou a má, você é a boa", disse Lila, já fazendo essa primeira distinção. Morando no mesmo bairro, em prédios vizinhos, e frequentando a mesma escola, Lenu e Lila pareciam ter destinos similares: ambas inteligentes, sagazes e destemidas. Logo estabelece-se uma relação de quase simbiose e competição entre as duas. Contudo, no final da quarta série, as duas amigas são obrigadas a se separar, pois, enquanto Lenu continua seus estudos no Fundamental II, Lila é impedida de estudar por sua família, que precisa de ajuda no comércio. Neste momento ocorre uma cisão irreparável entre as duas. Lenu iria viver tudo aquilo que Lila tinha planejado para a sua própria vida, mas não teve oportunidade de seguir. Separam-se em "o que Lenu foi e Lila poderia ter sido" e "o que Lila foi e Lenu pode se tornar se não prestar atenção aos seus passos", quase como se uma mesma pessoa visse a separação de sua linha do tempo em dois multiversos onde tomou decisões (ou decisões foram tomadas por outros sobre si) que mudaram para sempre sua vida.
Em História do Novo Sobrenome, o livro se desenrola em volta das relações amorosas e conjugais de Lenu e Lila. Enquanto Elena tenta conciliar essas relações com seus estudos, Lila tenta conciliá-las com as expectativas de sua família e de todo o bairro. Este segundo livro foi o mais babadeiro, cheio de acontecimentos movidos pela juventude dos personagens, afoitos em viver, perseguir seus sonhos e errar o tempo todo. Justamente por isso, essa unidade carrega uma tensão difícil de explicar. Aquela da classe trabalhadora, das pessoas que vieram do nada, de que qualquer passo dado em falso poderia significar a completa perdição das personagens. Elas não tem direito a uma segunda chance.
Aqui, você começa a conhecer tão bem as personagens, seus medos e sonhos, que, durante todos os outros livros, por mais inesperado que seja um acontecimento, uma tomada de decisão, você percebe o embasamento daquela escolha. A forma de agir de Lenu e Lila nunca é aleatória. Ao final, você já está soltando mentalmente frases como "típico da Lila agir assim".
Em História de quem foge e de quem fica, percebemos um crescendo na tensão política do momento, com ascensão do fascismo na Itália e perseguição aos comunistas. Também observamos o início de movimentos e discussões feministas até hoje contemporâneas, sobre a infiltração de todas as filosofias acadêmicas de igualdade nas classes operárias, menos estudadas, extremamente exploradas e subjugadas por outras classes diariamente, ou até mesmo subjugada entre seus próprios membros.
Essas reflexões político-ideológicas permeiam todos os campos da vida de Lenu, agora uma escritora conhecida que não mora mais no bairro de origem, que precisa descobrir como se posicionar, como ajudar, como contar a história do seu bairro sem ser perseguida, sem perder leitores, conciliando o papel de feminista com o papel de esposa, mãe e "menina do bairro que deu certo".
Para mim, foi o livro mais bonito, o que mais me tocou, pois a personagem passou pela idade que tenho hoje. Em muitas páginas, me peguei fazendo as mesmas indagações de Lenu, me indignando com as mesmas coisas, refletindo sobre qual aspecto me resignar ou não, sobre o que se pode mudar do nosso cotidiano e o que não se pode mudar, me olhando no espelho buscando entender quem ou o que eu tinha me tornado.
Por fim, em A menina perdida, Lenu volta ao bairro de origem e volta a dividir o cotidiano e jornadas de vida com Lila. A reaproximação das duas é algo positivo ou negativo? Precisa ser apenas uma dessas coisas? Já mais amadurecidas, as nossas protagonistas simplesmente resolvem serem quem são, despir as máscaras, viver as suas verdades e seus sonhos de acordo com a possibilidade de suas realidades. De fundo, sempre há o questionamento se existe mais para se viver além do bairro e, se existe, para que viver essas coisas? Será que vale a pena? É um livro que deveria trazer respostas, mas não traz. Só traz mais perguntas, mais indagações, assim como é a vida. Sem resoluções mesmo.
Duas coisas que eu me apaixonei nessa tetralogia foram: (1) Durante a narrativa dos quatro livros, conseguimos distinguir claramente o ponto de vista enviesado de quem conta a história. Tendo conhecimento da história dos personagens, você se torna tão íntima de suas personalidades que já consegue separar o que é fato do que é opinião. (2) Você nunca sabe a quem se refere o título dos livros. Seria Lila ou Lenu a Amiga Genial? Ou seriam ambas? A história do novo sobrenome, será o de Lila ou de Lenu? Quem fugiu e quem ficou? E quem voltou? Quem é a menina perdida? Esse título é literal ou subjetivo? O mais curioso é que, mesmo depois de ler os quatro livros, ainda não há uma certeza. Pois os títulos dos livros não são sobre uma ou outra, são sobre as duas, em momentos distintos, ao mesmo tempo, mas sempre as duas, vivendo vidas diferentes, mas que se cruzam em tantos pontos.
Eu vi gente no Twitter falando que o livro é chato, pois nada acontece. Fiquei indignada, pois para mim é justamente o contrário: uma vida inteira acontece. Na verdade, duas vidas inteiras. E nós temos o privilégio de acompanhar a evolução dessas duas mulheres passo a passo, suas decisões, seus arrependimentos, seus sentimentos contraditórios. É de uma beleza e reflexão incríveis.